
Numa cidadezinha qualquer, de ruas empoeiradas, onde um burro vai devagar para que as janelas olhem. E onde a vida é besta, como diria Drummond, ali chegou certo dia um homem decidido a plantar um imenso cafezal.

De família abastada, vinha no começo do século do Lycée Saint-Louis, de Paris, para onde fora enviado para receber educação privilegiada.
Além do cafezal, e de ter participado da Revolução Constitucionalista de 32, o jovem homem plantou naquele lugarejo calorento um cinema, um museu, um lar para os velhinhos, e um teatro.

Como eu sei disso? Juca me contou.
Quando o conheci, Juca da Silveira já era um homem grisalho, e de mãos sujas de graxa, que durante o dia fazia reparos em circuitos elétricos de automóveis enguiçados, e gostava muito de teatro, razão pela qual era o fiel guardião da chave daquela casa de espetáculos, naquela cidadezinha qualquer.
Cândido Brasil Estrela, o fazendeiro-poeta vindo de Paris lhe confiou, ainda em vida, a guarda permanente daquela chave.
Juca era um homem simples que amava o teatro, e cuidava daquele imóvel como se fosse a sua casa. Viajava para a capital sempre que podia para temporadas teatrais; não perdia uma única mostra ou festival. Conhecia atores e atrizes da capital, que lhe chamavam pelo nome. E se esforçava para que as turnês dos seus atores conhecidos incluíssem uma passagem, ainda que única, pelo teatro de Mirassol.
Não se podia trazer uma companhia inteira para grandes espetáculos. A bilheteria mirrada não era suficiente nem mesmo para os custos de transporte. Mas se podia trazer encenações individuais, no mais das vezes monólogos.
Quando retornava da capital, Juca trazia dezenas de textos dramáticos e peças teatrais na valise, com rascunhos e anotações nas bordas.
Nas noites calorentas e nas tardes de domingo, Juca se sentava sobre um banquinho, ou então entrava pela coxia, e caminhava sobre aquele palco, lendo os textos em voz alta. A plateia de cadeiras vazias eram as suas únicas companhias.
“Um homem esquisito”, diziam as mães e donas de casas, absortas diante dos aparelhos de tv em preto e branco, enquanto enxugavam as lágrimas assistindo as desventuras de mamãe Dolores, em “O Direito de Nascer”, ou então vendo a elegância engomada de “Antônio Maria”.
‘Um homem perigoso, ainda que trabalhador e honesto”, diziam os pais de família. Um homem que fala sozinho, que lê textos que atentam contra os bons costumes, e que até grita xingamentos quando está entusiasmado com o som das suas próprias palavras.
Para as professoras do colégio, da escola pública, Juca era um sonhador que gostava de ler, e era convidado para participar, esporadicamente, dos ensaios de comemorações festivas, ensinando aqueles adolescentes a entoar corretamente a pronúncia das palavras.
Nem perigoso, nem esquisito. Juca foi conquistando os corações daqueles jovens, que pouco a pouco foram se juntando a ele nas tardes de domingo. Muitos rapazes e poucas moças no início. Não era de bom grado que meninas frequentassem ensaios teatrais, diziam os defensores da honra e dos costumes daquelas pessoas de bem. Mas Juca persistia e a trupe crescia.
Jari era um rapaz franzino, mas tinha um vozeirão. Foi o primeiro a contracenar com Juca, lendo os textos sobre o palco, e tinha graça nas suas interpretações.
José Antônio Coito, um outro aluno da escola pública, tinha aquele nome por causa da troca de uma letra no seu último nome, feita por um escrivão desatento, na hora do registro do nascimento. Ele preferia ser chamado pelo apelido de “Zé-Galinha” e assim era conhecido.
Uma atriz da capital, Wanda Kosmo, viria em breve a interpretar o monólogo “A Assunta do 21”, anunciou entusiasmado Juca numa tarde de domingo. A plateia quase ficou completa no dia do espetáculo.
Alguns meses depois foi a vez de “Esta Noite Choveu Prata”, onde outro ator, vindo da capital, interpretava três personagens que se revezavam na mesma história. Todos nós achamos aquilo o máximo.
Jari, que além do vozeirão também tinha sempre uma sugestão de leitura, lembrou que já tínhamos meninas e meninos em número suficiente para montarmos o nosso próprio espetáculo.
Sugeriu que ensaiássemos “Os Físicos” de Friedrich Dürrenmatt, uma mistura de drama e comédia onde três cientistas se passavam por loucos e eram internados em um hospício, onde tentavam esconder segredos científicos capazes de destruir o mundo.
Eu tinha poucas falas na encenação, e fazia o personagem mordomo da diretora do sanatório, a Dra. Mathilde von Zahnd, que no final se revelava a grande vilã.
O teatro do Juca passou a ser o ponto de encontro nas tardes de sábado e domingo para muitos daqueles jovens de terceira classe, que não frequentavam os bailes de debutantes no Clube Municipal.
Em Mirassol havia uma estrada de ferro, e ao lado dos trilhos, um enorme galpão em cuja fachada estava escrito “Companhia Intercontinental de Café”. A Inter, como era chamada, era para onde os fazendeiros levavam os seus melhores grãos, que depois eram colocados em sacas sobre os vagões, e dias depois de viagens sobre os trilhos chegavam ao porto de Santos para serem enviados para os gringos distantes.
Numa tarde de domingo, enquanto a Dra. von Zahnd fazia a sua evolução sobre o palco, um homenzinho muito branco adentrou no teatro, e todos pararam o ensaio. Fazia dias que o homenzinho perambulava pelas vizinhanças, curioso para saber dos movimentos dentro daquele teatro.
“Não tem nada para fazer nessa merda de cidade, e eu vim ver o que vocês estão fazendo”, exclamou o forasteiro, que se chamava Deodato, e tinha estacionado lá fora um fusca verde com o logotipo da Inter na porta.
Deodato era um funcionário vindo de Santos, e havia sido designado para tomar conta da filial da companhia em Mirassol. O homem estava desolado pois ali onde estava faltava o mar, e sobrava o mormaço. Em Santos, quando não estava nos escritórios com ar condicionado, participava de uma companhia de teatro amador, e esse era o motivo da aparição repentina em nosso território.
Deodato disse a Juca, sem querer ofender, que o teatro que estávamos tentando fazer era antigo e antiquado. Teatro não é apenas decorar textos e recitá-los com voz empostada. Era preciso dar vida e movimento em tudo aquilo, e ele estava ali para ajudar, se fosse da vontade de todos.
Juca deu boas-vindas ao novato, e ambos se sentaram ao fundo na plateia para assistir as evoluções dos três personagens do hospício: Herbert Georg Beutler, que se dizia ser Isaac Newton; Ernst Heinrich Ernesti, que pensava ser Albert Einstein; e Johann Wilhelm Möbius, que dizia receber visões do rei Salomão.
Deodato desaprovou tudo o que viu, e sugeriu que começássemos tudo do princípio, escolhendo um novo texto, e que mandássemos às favas todos aqueles personagens alemães. Gostamos da sugestão e Juca não pôs reparos.
Vamos abandonar por uns tempos Bertolt Brecht, e viajar com Fernando Arrabal. “Um bom espetáculo precisa ter uma mistura de surrealismo, provocação, política e elementos grotescos", pontuou Deodato.
Ordenou que no próximo encontro trouxéssemos textos que tínhamos em casa, qualquer texto que fosse, desde receitas culinárias até tarefas de escola, ou livros didáticos.
Todos cumpriram a tarefa, Carmen trouxe a Bíblia da mãe, e Deodato pediu que a moça abrisse em qualquer lugar e lesse um trecho. A menina titubeou, e ele pediu então que ela lesse o primeiro versículo, do primeiro capítulo do primeiro livro da Bíblia, e a menina leu com voz trêmula:
“No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia, as trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus pairava sobre as águas”.
“Pronto!”, gritou Deodato, “vamos fazer o espetáculo da criação, o Gênesis!”
“Vamos criar o céu, a terra e o mar. Todos aqui já viram o mar?”, indagou. Alguns poucos responderam sim.
Zé-Galinha não gostava de participar com falas. Permanecia no canto do palco com a pilha de discos de vinil e uma rádio-vitrola. Ele conseguia colocar a agulha no ponto exato da trilha do disco quando queria reproduzir um determinado som. Também se ocupava com os interruptores dos refletores no teto, cujas luzes podiam ser aumentadas ou diminuídas nas suas intensidades.
Deodato estava entusiasmado e informou que iríamos começar pela criação do mar (o homenzinho pensava sempre no mar).
Antes que todos saíssem correndo para pegar garrafas e baldes de água, ele pediu que todos deitassem sobre o palco, e ficassem um corpo junto ao outro imóveis, formando uma paliçada de gente deitada.
Depois, ordenou que rolássemos de um lado para o outro, lentamente, como se fôssemos as águas, formando pouco a pouco uma onda.
Por fim pediu que Zé-Galinha apagasse toda a luz e cessasse todos os sons. E na sequência, aos poucos, os corpos começassem a rolar sobre o palco, ao mesmo tempo que a luz e o som aumentavam lentamente a intensidade.
Pela primeira vez tivemos a sensação de que éramos realmente uma onda, e todos ali deitados eram o mar, se movendo de um lado para outro, e batendo nas pedras, que eram os limites do palco. O mundo estava sendo criado.
A menina que trouxe a Bíblia chorou de emoção.
Eu voltei para casa com as roupas tão sujas que, quando minha irmã me perguntou onde eu tinha estado e eu respondi: “no mar”, ela riu e desacreditou.
Deodato ensaiou com seu elenco capenga muitos textos curtos, pequenas peças teatrais, e conseguia ingressos grátis para os festivais de teatro amador universitários, que ocorriam nas cidades ao longo da estrada de ferro.
Inscreveu-nos para representar “A Prostituta Respeitosa”, peça de Jean-Paul Sartre, em um desses festivais. A trama abordava o preconceito racial, onde um negro fugindo da polícia se escondia em um bordel. Na falta de um negro, pintaram o meu rosto com tinta preta no dia da representação, ato que seria condenável nos dias de hoje.
Em um outro festival, fomos assistir a uma peça épica, onde um grupo de guerreiros discutiam como invadir a fortaleza, sem chegar a uma conclusão. De repente, o líder dos guerreiros, de lança em punho, gritou a todos os pulmões:
“Para trassss, filhos da Babilônia”, e assumiu o comando da invasão.
Jari adorou a performance e, no retorno, dentro da perua Kombi, veio repetindo o refrão “Para trassss, filhos da Babilônia”, com sua voz potente.
O refrão passou a fazer parte das nossas conversas, sempre que havia carência de terminar uma discussão enfadonha.
No colégio, Ariovaldo, o professor de Educação Moral e Cívica, estava curioso para saber do grande interesse dos alunos pelas tardes de domingo. Era um professor de respeito e membro do Rotary Club na cidade. Era um dos que abominavam a ideia de que meninas de família se envolvessem com gente de teatro.
Numa tarde enquanto ensaiávamos, Ariovaldo adentrou no recinto e pediu para falar com Juca e Deodato em particular. O homem trazia um calhamaço de folhas mimeografadas e queria encomendar uma encenação.
Haveria em Ribeirão Preto uma convenção dos rotarianos, e Ariovaldo tinha pretensões de impressionar os delegados, pois isso o ajudaria a subir na hierarquia da organização.
Propôs inscrever toda aquela trupe mambembe como membros do Interact, uma espécie de Rotary Club para jovens, normalmente dedicado aos filhos dos rotarianos.
Em troca, pedia que encenássemos a peça “Lamentamos a Renúncia”, um texto babaca, onde um rotariano apresentava um pedido de renúncia, motivado pelo mau acolhimento que teve dentro do grupo, e os demais membros discutiam de quem era a culpa por aquela defecção.
Deodato torceu o nariz para a proposta, mas a encenação ocorreria no final da programação daquele conclave, e antes de um jantar de gala que seria servido em um clube local. A excitação de todos pela viagem e pelo jantar convenceu Deodato a fazer o sacrifício.
No figurino, todos os rapazes deveriam usar paletó, como faziam os rotarianos, e as meninas vestidos ou saias. Todos reviraram os guardas-roupas dos avós e tias para conseguir os paletós.
No dia da apresentação sobre o palco, os atores, homenzinhos de paletós, discutiam acalorados de quem era a culpa da renúncia do rotariano sem chegar a uma conclusão.
Foi quando Jari não resistiu à tentação de introduzir um caco naquele enredo.
Avançou sobre o grupo, e com seu vozeirão bradou: “Para trassss, filhos da Babilônia”. A gente riu muito, e a plateia não entendeu nada, de qual era a relação entre o Rotary Club e a Babilônia.
Ariovaldo, visivelmente contrariado, fez chegar a nós a informação de que não participaríamos do jantar no clube.
O protocolo exigia que se usasse paletó e gravata; tínhamos os paletós, mas nenhum de nós havia levado gravatas. Este era o motivo alegado, e avisava que um lanche seria servido fora das dependências. Na entrada do clube, o mestre de cerimônias se desculpou pelo contratempo.
De todos, Zé-Galinha foi quem mais ficou contrariado. O jantar fazia parte do trato, e aquele detalhe das gravatas não tinha sido combinado.
Jari fez uma observação interessante, o convite impresso para o jantar mencionava sim a gravata, mas não detalhava o modelo. Portanto, havia a possibilidade de usarmos gravatas-borboletas. Fitas e tiras de pano, se adequadamente enroladas e com laços adequados, poderiam se transformar em gravatas-borboletas.
As meninas remexeram suas mochilas, e até cadarços de tênis serviram para fazer os laços. Em pouco tempo nos transformamos em um grupo de engravatados. O porteiro mestre de cerimônias não teve mais argumentos para impedir a nossa entrada. Quando nos sentamos finalmente à mesa, o serviço já havia iniciado, e estavam servindo a entrada: melão com presunto.
Quando o ano findou, Deodato, meio acabrunhado, nos informou que o seu tempo havia terminado. Retornaria para Santos e veria o mar de verdade, mas não se esqueceria de nós.
Juca voltou a ler os textos sobre o palco com estudantes mais jovens que chegavam.
Eu também tive que ir, tinha um encontro marcado na Avenida Paulista 900. Mas esta é outra história.
Conteúdo extraído na íntegra de: https://open.substack.com/pub/jesus814/p/filhos-da-babilonia?utm_campaign=post&utm_medium=web
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