Por Professor Doutor Jesus Paula Carvalho.
Médico Ginecologista e Professor na FMUSP.
Propositadamente não escreverei sobre EXAMES DE ROTINA, mas sim sobre PLANO DE CUIDADOS, posto que os exames de rotina são apenas a parte mais visível, porém menos importante, de um plano de cuidados.
Uma pessoa pode procurar um profissional de saúde para tratar uma doença sintomática, ou uma doença instalada, mas que ainda não se manifestou, ou ainda para evitar que uma determinada doença aconteça.
A prática muito comum de se fazer enormes baterias de exames laboratoriais (checkup), sem antes uma avaliação médica criteriosa, não tem respaldo na literatura científica. É como atirar no escuro para ver se acerta em alguma coisa, e os resultados não são bons.
Um plano de cuidados, por outro lado, deve seguir um ritual que vou explicitar aqui passo a passo, da forma como ensinamos aos nossos alunos, nas boas escolas médicas.
Primeiramente escolha um profissional que tenha tempo para lhe ouvir, no tempo que for necessário, e que considere você uma pessoa única. Alguém com quem você se identifique e que possa estabelecer uma relação empática. Pessoas diferentes tem empatia por profissionais também diferentes. Escolha o seu.
Relate as suas queixas, os sinais e os sintomas que no seu entender podem ser importantes, sem se preocupar em usar termos técnicos. Fale com as suas próprias palavras e entendimento. Este tempo chama-se em propedêutica “Queixa e Duração”
Depois de ouvi-la, o médico deve proceder a coleta dirigida de informações sobre as suas queixas. Este tempo chama-se “História da Moléstia Atual”. É um relatório completo de como cada sinal e cada sintoma se desenvolveu desde o início até o momento atual.
O próximo passo chama-se “Antecedentes Pessoais”. Mesmo que você não relate, os sintomas atuais podem estar relacionados com males que aconteceram no seu passado, como uma doença crônica, um tratamento cirúrgico, um hábito ou uma deficiência. Iinfecções urinárias, por exemplo são mais frequentes em quem é diabético, cirurgias ou outros tratamentos podem ter deixado sequelas, serem os responsáveis pelos seus sintomas atuais, mesmo que você não desconfie disso.
Na sequência o médico deve indagar e registrar os seus “Antecedentes Familiares”. Algumas doenças, e inclusive alguns tipos de câncer, ocorrem mais frequentemente em pessoas da mesma família. Câncer de mama, de ovário, pâncreas, e colorretal são conhecidas doenças com tendência familiar.
“Hábitos e Medicações”. O uso de substâncias lícitas ou ilícitas podem ser a causa dos seus sintomas. É raro nos dias atuais, uma pessoa não fazer uso de medicamentos, que muitas vezes podem parecer inocentes, mas podem causar grandes danos. Muito cuidado com as chamadas substâncias ditas naturais, que podem ser causas de intoxicações e complicações graves (ginkgo biloba, por exemplo, pode causar hemorragias em cirurgias por interferir na coagulação do sangue). Muitas vezes a paciente omite o uso, por achar sem importância essa informação. Descrever um dia típico da sua rotina é também uma informação médica importante – a hora que você acorda, como você se alimenta, as atividades físicas, como é sua noite de sono e seu hábitos.
“Antecedentes Reprodutivos”. A história menstrual, tipo de ciclo e sintomas podem apontar anomalias no sistema reprodutor feminino. Assim como a história obstétrica, número de gestações, e o tipo de parto.
“Investigação sobre os diversos aparelhos”. Não é fora de propósito um ginecologista indagar e registrar queixas em outros sistemas, como queixas urinárias, intestinais, ou em outros órgãos. Como médico ele tem mais condições fazer diagnósticos e tratar coisas simples em outros sistemas, ou então fazer um encaminhamento correto para um especialista, quando o sinal ou sintoma lhe parecer mais relevante, ou fora da sua área de competência.
No final desse processo, que no seu conjunto se chama “Anamnese”, o médico deve estar apto a formular uma “Hipótese Diagnóstica”, que não precisa ser necessariamente definitiva. Mas é um ponto de partida para a coleta de mais dados ou informações que vão confirmar ou rejeitar aquela hipótese. É nesse ponto é que podem entrar os chamados “Exames subsidiários”, que podem ser exames de sangue, radiológicos, patológicos etc.
A análise conjunta dos dados da Anamnese + Exames Subsidiários vai resultar no “Diagnóstico Definitivo”, que é a base de todo o tratamento.
O que são os chamados “Exames de Rotina” em Ginecologia?
São exames realizados em uma população sem qualquer sintoma, com o objetivo de detectar doenças ocultas. São conhecidos também como “Exames de Rastreamento” ou exames de “Screening”, e tem por objetivo fazer diagnóstico precoce de doenças muito frequentes, mas que permanecem ocultas por muito tempo. São exemplos dessas doenças, o câncer do colo do útero e o câncer de mama.
Na ginecologia constituem exames de rotina o Teste de Papanicolaou (ou mais recentemente o teste de HPV) e a Mamografia. São exames que quando realizados em grandes populações demonstraram redução significativa do câncer do colo do útero e do câncer da mama. É preciso haver evidências científicas dos benefícios. Todos os demais exames, clínicos, radiológicos ou laboratoriais, não devem ser considerados exames de rotina. São exames que complementam uma avaliação e um exame físico prévio, após uma consulta médica bem conduzida.
As Virtudes e os Vícios
Se por um lado os exames laboratoriais, de imagens e etc. trouxeram grandes avanços no esclarecimento dos diagnósticos, por outro lado, o uso sem qualquer critério transformou a figura do médico em um mero despachante apressado de requisições de exames, para a alegria das empresas de laboratórios.
Muitas vezes as aberrações são tantas, que se pode chegar ao despautério de já ter uma lista de exames pronta e impressa, antes mesmo de se conhecer o paciente. Ou então a lista de exames é solicitada e distribuída por meios digitais. Profissionais paramédicos são pródigos em fornecer listas de exames laboratoriais para que o paciente solicite ao médico na sua próxima consulta. A maioria desses profissionais não tem permissão legal para solicitar exames e por isso orientam os pacientes a levarem os seus pedidos de exames a um médico.
Esse novo paradigma não vai fazer ninguém viver mais ou melhor, como afirma, em um editorial, uma das mais renomadas revistas científicas dos Estados Unidos, que questiona essa prática. [1]
A desvalorização da consulta médica e do exame clínico, em prol de uma overdose de exames laboratoriais, pode levar a erros e gastos desnecessários.
O valor da consulta médica criteriosa e do exame físico na construção e manutenção de uma boa relação médico-paciente nem sempre é um assunto estudado ou discutido.
É revelador, no entanto, que as reclamações sobre médicos geralmente incluem palavras que revelam a importância da consulta médica, do exame clínico e da habilidade do profissional em conduzir um plano coerente de cuidados.
São comuns afirmações como estas: “O médico não olhou no meu rosto. “O médico só preencheu papeis e pedidos de exames”, “O médico não me deu tempo para falar” ou “O médico nunca tocou em mim!”
O exame de um(a) paciente é um ritual honrado de cuidados e cura; o privilégio do toque é dado a poucas outras profissões na sociedade. O fracasso em conectar-se com o(a)s pacientes, a falta de tempo significativo gasto com o(a)s pacientes, e a perda de rituais críticos contribuem para a epidemia de frustrações do(a)s pacientes, e da desilusão de muitos bons médicos com a profissão. [2]
Aquele(a) paciente que demanda que o médico peça “todos” os exames possíveis, pois afinal de contas ele(a) está pagando caro pelo plano de saúde, e quer aproveitar ao máximo, e não valoriza o trabalho do profissional criterioso, está apenas contribuindo para manter ou piorar este estado de coisas. E provavelmente sentirá os efeitos dessa prática no próximo reajuste do seu plano de saúde.
Referências
[1] Brett AS. The Routine General Medical Checkup: Valuable Practice or Unnecessary Ritual? JAMA. 2021;325:2259-61.
[2] Costanzo C, Verghese A. The Physical Examination as Ritual: Social Sciences and Embodiment in the Context of the Physical Examination. Med Clin North Am. 2018;102:425-31.
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O texto acima representa a opinião do escritor e não necessariamente representa a opinião da Disciplina de Ginecologia da FMUSP.
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